Como defender um delírio se não através de falácias? É o que todo criacionista faz. Michael Behe, famoso criacionista estadunidense, depois de ter passado vergonha ao publicar sua obra "A Caixa Preta de Darwin", um livro todo escrito na base da falácia de apelo à ignorância e depois de ter tido a sua ignorância exposta publicamente em 2005, quando depôs em favor de um grupo de criacionistas que queria impor o criacionismo em uma escola pública da Pensilvânia, voltou a atacar pouco tempo depois. O artigo abaixo, publicado na revista Science, faz valorosamente a defesa da ciência, refutando as falácias de Michael Behe em mais um livro onde ele expõe publicamente seus argumentos pseudocientíficos. Eis o artigo, traduzido por mim:
"O Senhor o devolveu às minhas mãos": Estas foram as palavras que Thomas Huxley, confidente e aliado mais leal de Darwin, teria murmurado a um colega ao fazer suas as palavras do Bispo Samuel Wilberforce e refutar a crítica do Bispo à Teoria de Darwin no lendário debate de 1860, em Oxford. Essas também são as primeiras palavras que surgem na minha cabeça conforme eu leio The Edge of Evolution: The Search for the Limits of Darwinism, de Michael Behe. Nele, Behe lança mais uma fornada de alegações explícitas sobre os limites da evolução darwinista. Ele alega que a Teoria da Evolução foi tão pobremente concebida que Darwin involuntariamente fez um grande favor aos seus críticos ao publicá-la.
Em Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution (1), Behe aprofundou a noção de que certos sistemas bioquímicos são "irredutivelmente complexos" e que, portanto, não poderiam ter evoluído a partir do sistema darwiniano. A conclusão a que ele chega é que tais sistemas foram desenhados inteligentemente. Desde esse livro, Behe tem desenvolvido uma função importante no Movimento do Desenho Inteligente (ID, do inglês Intelligent Design), incluindo uma estrela tomada como testemunha de defesa no caso da escola de Dover em 2005. Apesar de seu testemunho - ou, devo dizer, em parte por causa do que ele disse (2) - o Desenho Inteligente foi considerado um conceito religioso e o seu ensino nas escolas públicas estadunidenses foi considerado inconstitucional.
Behe, um professor de Bioquímica na Universidade de Lehigh, tem encontrado ressonância entre uma grande parcela de criacionistas que consideram a evolução darwinista incompatível com as suas crenças religiosas e enxergam validação científica nas alegações de Behe. Claramente, o público-alvo desse novo livro também é aquele constituído por criacionistas, embora os mesmos possam considerar algumas partes do livro um pouco embaraçosas. Por exemplo, Behe aceita explicitamente a habilidade de mutação randômica e seleção para explicar as variações internas e diferença entre espécies proximamente relacionadas (mas não as mais altas taxas, como a classe dos vertebrados). Ele também aceita os cerca de 4,5 bilhões de anos de idade que a Terra tem e que nós temos um ancestral em comum com os chimpanzés. Isso certamente não cai bem em algumas rodinhas.
Behe também explora alguns exemplos de evolucionismo darwinista no nível molecular, incluindo um tratamento intensivo da "guerra de trincheiras" evolucionária lutada entre humanos e parasitas da malária ao longo do milênio, tudo dentro do contexto do que a evolução darwinista "pode explicar". Então, qual é o problema?
O problema é o que Behe considera que a evolução darwinista não pode fazer: produzir mais mudanças "complexas" do que aquelas que têm levado humanos a lutar contra a malária ou permitido que os parasitas da malária evitem as drogas que nós arremessamos contra eles. O principal argumento de Behe reside na assertiva de que duas ou mais mutações simultâneas são requeridas para acréscimos em complexidade bioquímica e tais mudanças estão, exceto em raras circunstâncias, além dos limites da evolução. Ele conclui que "a maioria das mutações que constroem as grandes estruturas da vida não devem ter sido aleatórias". Em resumo, Deus é um engenheiro genético que, de alguma forma, está desenhando mudanças no DNA para construir máquinas bioquímicas e taxas mais altas.
Mas, para chegar a essa conclusão, Behe se apoia em assertivas inválidas sobre como os genes e as proteínas evoluíram e como as proteínas interagem, e ele ignora completamente uma ampla porção de experimentos que contradizem as suas premissas deficitárias. Infelizmente, esses erros são de natureza técnica e, portanto, de difícil apreensão para leitores leigos, e até mesmo para alguns cientistas (aqueles que não são familiarizados com biologia molecular e com genética evolutiva). Algumas pessoas serão ludibriadas. Meu objetivo aqui é apontar as falhas críticas nos principais argumentos de Behe e guiar leitores através de algumas referências para ilustrar por que o que ele alega estar além dos limites da evolução darwinista se adequa muito bem dentro dos domínios da Teoria da Evolução.
O principal erro de Behe é minimizar o poder da seleção natural de agir cumulativamente como características ou moléculas que evoluem gradualmente de um estado para outro via intermediários. Behe aponta corretamente que na maioria das espécies duas mutações adaptativas ocorrem instantaneamente em dois locais específicos em um gene são muito improváveis e essas mudanças funcionais nas proteínas costumeiramente envolvem dois ou mais locais. Mas essa é uma falácia non sequitur para saltar a conclusão, como Behe faz, de que tais realocações de múltiplos aminoácidos portanto não podem ocorrer. Realocações múltiplas podem acumular quando cada realocação de aminoácido afeta a performance, mesmo rapidamente, porque a seleção pode agir em cada realocação individualmente e as mudanças podem ser feitas sequencialmente.
A contra-gosto, Behe admite que apenas "raramente, muitas mutações podem sequencialmente adicionar a cada um para melhorar as chances de sobrevivência de um organismo". Raramente? Esta, obviamente, é a rotina diária da evolução. Exemplos de seleção cumulativa mudando múltiplos locais em proteínas evoluintes incluem resistência de tetrodotoxina em serpentes (3), a mudança de cor na visão dos animais (4), resistência ao antibiótico cefotaxima em bactérias (5), e resistência à pyrimetamina em parasitas da malária (6) - uma notável omissão considerando a extensiva discussão de Behe acerca da resistência da malária às drogas.
Behe parece ignorar qualquer apreciação sobre as dimensões quantitativas da evolução molecular. Ele parece pensar nas características funcionais das proteínas em termos qualitativos como se as ligações ou catálises fossem tudo ou nada ao invés de um amplo espectro de afinidades ou taxas. Além disso, ele não entende a realidade fundamental de um processo mutacional seguido pelas proteínas, evoluindo novas propriedades.
Essa falta de pensamentos quantitativos esconde um segundo erro crasso e fatal, resultante de suposições enganosas que Behe comete a respeito de interações entre proteínas. Há muito o autor tem se preocupado com complexos protéicos e como eles podem ou não podem evoluir. Ele argumenta que a geração de um único ponto de ligação proteína-proteína é extremamente improvável e que os complexos de apenas três diferentes proteínas estão "além da margem da evolução". Mas Behe baseia seu argumento em requisitos infundados para interações protéicas. Ele insiste, baseado na consideração de que apenas um tipo de estrutura protéica (os locais combinados de anticorpos) que cinco ou seis posições devem mudar de uma vez em ordem para fazer um bom encaixe entre proteínas — e, consequentemente, bons encaixes são impossíveis de evoluir. Uma imensa porção de dados experimentais refuta diretamente essa alegação. Há dúzias de muito bem estudadas famílias de proteínas celulares (quinases, fosfotases, proteases, proteínas adaptadoras, enzimas de simulação etc.) que reconhecem curtos arranjos peptídicos lineares nos quais apenas dois ou três resíduos de aminoácidos são críticos para a atividade funcional [revisado em (7—9)]. Milhares de interações reversíveis estabelecem as redes protéicas que governam a fisiologia celular.
Cálculos muito simples indicam o quão facilmente tais arranjos evoluíram de forma aleatória. Se alguém admite uma extensão média de 400 aminoácidos por proteína e igual abundância entre todos aminoácidos, qualquer arranjo entre dois aminoácidos é plausível que ocorra de forma aleatória em todas as proteínas de uma célula. (Existem 399 arranjos de dipeptídeos em uma proteína com 400 aminoácidos e 20 × 20 = 400 possíveis arranjos de dipeptídeos.) Qualquer arranjo específico de três aminoácidos uma vez aleatoriamente em todas as 20 proteínas e qualquer arranjo de quatro aminoácidos ocorrerá uma vez em todas as 400 proteínas. Isso significa que, sem qualquer nova mutação e sem a seleção natural, muitas sequências que são idênticas ou semelhantes para muitos arranjos de interação já existem. Novos arranjos podem erguer-se prontamente, de forma aleatória, e qualquer interação fraca pode facilmente evoluir, por via da mutação aleatória e da seleção natural, para se tornar uma interação forte (9). Ademais, qualquer par de proteínas interativas pode facilmente recrutar uma terceira proteína, e até uma quarta, para formar largos complexos. De fato, já foi demonstrado que novas interações entre proteínas (10) e redes de proteína (11) podem evoluir rapidamente e se encaixam muito bem dentro dos limites da evolução.
É possível que Behe desconheça todos esses dados? Ou ele simplesmente escolheu ignorá-los? Behe tem uma gravação na qual declara o que é impossível e despreza a literatura científica, e ele claramente não aprendeu as lições com as suas gafes anteriores. Ele foi novamente a “público” com assertivas sem o benefício (ou a sabedoria) de primeiro testar a sua força diante de pares qualificados. Por exemplo, Behe certa vez escreveu, “se a evolução aleatória é verdadeira, deve haver um amplo número de formas transicionais entre o Mesonychid (um ancestral da baleia) e a baleia da antiguidade. Onde estão eles?” (12). Ele assumiu que tais formas não seriam ou poderiam não ser encontradas, mas três espécies transicionais foram encontradas por paleontologistas dentro de um ano após essa afirmação. No livro A Caixa Preta de Darwin, ele fixou que os genes para os modernos sistemas bioquímicos complexos, tais como a coagulação sanguínea, só poderiam ter sido “desenhados bilhões de anos atrás e ter sido passados dessa forma até o tempo presente... mas não ‘ligados’.” É sabido que isso é geneticamente impossível porque os genes que não são usados acabam degenerando, mas isso não estava no livro dele. E o argumento de Behe contra a evolução do flagelo e do sistema imunológico tem sido desmantelado em detalhes (13, 14) e novas evidências continuam a aparecer (15), ainda que as mesmas velhas alegações em favor do desenho reapareçam por aqui como se não tivessem sido refutados.
Os contínuos e fúteis ataques dos oponentes da evolução lembram outro confronto lendário, aquele que ocorreu entre Arthur e o Cavaleiro Negro no filme Monty Python e o Cálice Sagrado. O Cavaleiro Negro, assim como os oponentes da evolução, continuam a lutar mesmo que os seus membros tenham sido cortados fora, um por um. O argumento “não existem fósseis transicionais” e o modelo dos “genes desenhados” foram todos bem cortados, os tribunais cortaram a alegação “DI é ciência”, e o nonsense aqui sobre o limite da evolução é rapidamente fatiado em pedaços pela bem fundamentada bioquímica. Os cavaleiros do DI devem professar que essas afirmações são “apenas um arranhão” ou “apenas uma ferida na carne,” mas o argumento para o desenho não tem pernas científicas para permanecer de pé.
Referências:
1. M. J. Behe, Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution (Free Press, New York, 1996).
2. Kitzmiller et al. v. Dover Area School District et al., Memorandum Opinion, 20 December 2005; www.pamd.uscourts.gov/kitzmiller/decision.htm.
3. S. L. Geffeney et al., Nature 434, 759 (2005).
4. S. B. Carroll, The Making of the Fittest: DNA and the Ultimate Forensic Record of Evolution (Norton, New York, 2006).
5. D. M. Weinreich, N. F. Delaney, M. A. DePristo, D. L. Hartl, Science 312, 111 (2006).
6. W. Sirawaraporn et al., Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 94, 1124 (1997).
7. V. Neduva et al., PLoS Biol. 3, e405 (2005).
8. R. P. Bhattacharyya, A. Reményi, B. J. Yeh, W. A. Lim, Annu. Rev. Biochem. 75, 655 (2006).
9. V. Neduva, R. B. Russell, FEBS Lett. 579, 3342 (2005).
10. Y. V. Budovskaya, J. S. Stephan, S. J. Deminoff, P. K. Herman, Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 102, 13933 (2005).
11. P. Beltrao, L. Serrano, PLoS Comput. Biol. 3, e25 (2007).
12. M. J. Behe, in Darwinism, Science or Philosophy?, J. Buell, V. Hearn, Eds. (Foundation for Thought and Ethics, Richardson, TX, 1994), pp. 60–71.
13. A. Bottaro, M. A. Inlay, N. J. Matzke, Nat. Immunol. 7, 433 (2006).
14. M. J. Pallen, N. J. Matzke, Nat. Rev. Microbiol. 4, 784 (2006).
15. R. Liu, H. Ochman, Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 104, 7126 (2007).
¹ Este artigo foi originalmente publicado no Volume 316 da revista Science, edição de 8 de junho de 2007.
² O resenhista, o autor de The Making of the Fittest, é do Laboratório de Biologia Molecular do Instituto Médico Howard Hughes, da Universidade de Wisconsin, Madison, WI 53706, Estados Unidos. E-mail: sbcarrol@wisc.edu