quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A Inocência dos Muçulmanos: deve-se morrer pela liberdade de expressão?


Muito se tem falado nas últimas semanas sobre a polêmica gerada pela divulgação do filmete A Inocência dos Muçulmanos, considerado ofensivo ao Islã. Talvez se o filme tivesse abordado ícones da cultura religiosa ocidental, não tivesse provocado tanta manifestação de ódio. Houve filmes polêmicos como A Última Tentação de Cristo e Je Vous Salue Marie que atiçaram os ânimos de cristãos no Ocidente, mas nada comparado à tsunami de irracionalidade e de selvageria provocada por A Inocência dos Muçulmanos. Por que isso? Porque nos países de maioria muçulmana, a questão religiosa é considerada central. É um elo de solda cultural e que está sempre presente. Se levarmos em conta que neste exato momento em que vivemos os sentimentos antiamericanos estão especialmente exacerbados, o Oriente Médio se torna um barril de pólvora. E por que esse antiamericanismo? Simples: pela guerra no Iraque, pela guerra no Afeganistão, mas não é só por isso. Em todas as revoltas da chamada "Primavera Árabe", a sensação que essas populações estão experimentando é: "Nós estamos nos auto-afirmando contra um inimigo externo". E quem é esse inimigo externo? Os Estados Unidos.

Todo esse caldo de cultura, então, estabelece uma especial animosidade em face ao poder americano e à cultura americana. Nisso, aparece esse vídeo tosco chamado A Inocência dos Muçulmanos e que foi produzido nos Estados Unidos. É um vídeo tosco e de mau gosto, mas é apenas um vídeo. Eu até poderia usar aqui a palavra "pretexto", mas eu acho que ela não seria adequada, porque diminui a importância que o episódio tem. Esse vídeo não é um pretexto, é muito diferente disso. O surgimento desse vídeo é uma possibilidade. O vídeo enseja uma possibilidade para que se crie ações coletivas que estão latentes. Se ainda levarmos em conta que o potencial revolucionário da Primavera Árabe está sendo frustrado e que existem energias de revolta extremamente ressentidas porque a população árabe está sentindo que está perdendo uma batalha que iniciou, essa frustração também encontra nesse tipo de ação a possibilidadade de se extravazar e de se realizar.

Tudo isso junto deixa mais uma vez clara a diferença de cultura política absolutamente fundamental entre aquelas sociedades e a sociedade ocidental. Nos últimos anos, os Estados Unidos bombardearam o Líbano, o Iraque, a Líbia, a Somália, o Paquistão, o Afeganistão etc. Ninguém gosta de ser bombardeado. Ninguém ama quem os bombardeia. Por isso existe um acúmulo de ódio. Em segundo lugar, devemos analisar como a política externa dos Estados Unidos joga com as divisões do Islã. O Islã não é uma religião homogênea, é muito dividida. E os Estados Unidos têm apoiado sistematicamente as facções mais extremistas, como os salafistas. Agora, por exemplo, os Estados Unidos vêm apoiando o que há de mais criminoso dentro do Islã contra o governo laico de Assad na Síria. Quem fez o ataque em Benghazi, na Líbia, que matou o embaixador Christopher Stevens, foram os mesmos aliados dos Estados Unidos de alguns meses atrás. Aquelas brigadas salafistas assassinas eram as mesmas que se mobilizaram contra Kadafi.

No centro de todo esse conflito, levanta-se algo igualmente importante: a questão da liberdade de expressão. A secretária de Estado estadunidense Hillary Clinton já declarou ter repudiado o contrúdo do vídeo, mas também disse que não pode cercear a liberdade de expressão de nenhum cidadão estadunidense, porque isso é inconstitucional. Guardando as devidas proporções, poderíamos até dizer que a divulgação do vídeo anti-Islã poderia ser comparada ao episódio do bispo Von Helde da Igreja Universal, que chutou uma estátua de uma santa católica em 1995. Na época, houve até rumores de uma "guerra santa" velada no Brasil. O que aconteceu foi mais uma "guerra fria", com provocações de ambos os lados. Mas não houve carnificinas, como costuma ocorrer no mundo islâmico quando eclodem episódios interpretados como "blasfêmia".

Desse episódio ocorrido no Brasil poderíamos até afirmar que uma sociedade que não admite que se chute a imagem de uma santa é uma sociedade comprometida sob o ponto de vista da democracia. Os símbolos religiosos só são sacramentais para quem acredita naquilo. Quem não acredita não tem a mínima obrigação de respeitar esses símbolos. E, nesse caso, é liberdade de expressão, sim. Não há nenhum problema, sob o ponto de vista da democracia, que o pastor da igreja Universal chute uma estátua que representa uma santa. É claro que ele terá que arcar com uma série de consequências derivadas desse ato, mas o ato em si está em consonância com os preceitos de uma sociedade democrática. A pessoa vai pagar por isso perante a opinião pública porque, evidentemente, chutar uma imagem de uma santa, mesmo que essa imagem seja considerada sagrada por uma significativa parcela da população, é uma bobagem, uma provocação infantil. Agora, tentar penalizar isso como algo inaceitável, tentar proibir isso ou tentar estabelecer uma punição penal para isso, é algo absurdo, tendo em vista que vivemos em uma sociedade laica e democrática.

Nakoula Basseley Nakoula, o fundamentalista cristão que realizou esse vídeo, é um idiota. A Inocência dos Muçulmanos é uma provocação irresponsável de um fanático cristão. Agora, tentar proibir alguém de fazer um vídeo, mesmo sendo esse alguém um idiota como Nakoula, é um absurdo. Proibir é um absurdo. Ele tem que ser combatido no campo das ideias, da crítica. Quem defende que deva haver restrição à liberdade de opinião alega que essa liberdade seria utilizada para pregações de ódio contra negros, índios, mulheres etc. Mas há uma diferença brutal entre vilipendiar pessoas e vilipendiar símbolos. Negros e índios são condições sociais, são portabilidades. Eu considero o valor cultural dessa agressão a Maomé, mas essa agressão tem que ser disputada no plano da opinião, no plano da formação da preferência. Eu sou contra esse filme, um filme tosco e de mau gosto. O filme é uma mera provocação política que despertou uma reação violenta em escala internacional, uma onda de atitudes brutais que provocu muitas mortes. Mas nem mesmo toda essa situação gravíssima deveria fazer com que o governo estadunidense criasse uma legislação que impedisse os seus cidadãos de se expressarem da forma que eles queiram, mesmo que aconteçam manifestações como a de um idiota como Nakoula. O que vai impedir que situações espinhosas como essa se repitam é a discussão séria, aberta e aprofundada de temas polêmicos como a contraposição da ampla liberdade proporcionada pelas democracias ocidentais e a opressão das teocracias.

A questão das caricaturas na Dinamarca é um bom exemplo de parâmetro do que está acontecendo hoje. O cartunista dinamarquês fez uma série de caricaturas insultando Maomé do ponto de vista dos islâmicos. Uma das caricaturas tinha um turbante com uma bomba. Insultar a figura de Maomé é um crime de morte na cultura muçulmana, mas seria um absurdo proibir o jornal da Dinamarca de publicar as caricaturas e condenar o cartunista porque ele fez algo que insulta os muçulmanos. Em primeiro lugar, o insulto aos muçulmanos é um problema dos muçulmanos. Em segundo lugar, quando isso se transforma em problema para alguém que não é muçulmano, é o debate que vai resolver. Na Dinamarca o jornal manteve as caricaturas e não se desculparam, porque não há por que pedir desculpas. É claro que essa atitude desperta a ira dos terroristas, e a vida do responsável pelos insultos corre perigo por isso, mas devemos lembrar também, sem ironias, que viver é perigoso. A vida é uma aventura perigosa. Tendo isso em mente, nós temos que fazer escolhas. E qual será a nossa escolha? Nós vamos agora começar a desenhar o mapa institucional de nossos países de forma a atender demandas de quem pensa diferente de nós ou vamos agir de acordo com os preceitos da democracia?

Eu sou totalmente a favor de que se deixe Maomé em paz, mas tem gente que não quer deixar Maomé em paz e eu acho que aqueles que não querem, têm todo o direito de não querer deixar Maomé em paz. Uma coisa é você respeitar a crença e o direito de crença do outro, respeitar o direito que a pessoa tem de professar a sua crença. Outra coisa é você confundir isso com com o respeito aos ícones da crença, respeito aos sacramentos da crença. Você não pode exigir isso de quem não tem essa crença. Essa exigência é totalmente ilegítima. Um pequeno exemplo: imaginem um naufrágio. Agora imagine que nesse navio que está naufragando, esteja a estátua de uma santa e um cachorro. Tendo em vista que estão em compartimentos separados, haverá tempo para salvar apenas um. Provavelmente, muita gente vai achar mais importante salvar a estátua do que salvar o cachorro. Eu posso aceitar que isso seja correto para aqueles que têm fé naquela imagem. Mas também acho ultralegítimo aqueles que não têm fé naquela santa prefiram salvar o cachorro e deixar a imagem da santa afundar. A ideia de respeitar ícone está sendo confundida com a ideia de respeitar o direito da crença de cada um. E essa diferença deve ser esclarecida.


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