sexta-feira, 30 de março de 2012

Dinheiro Público para Comunidades Cristãs?



Foi realizada no dia de ontem (29 de março, quinta-feira), no auditório Milton Figueiredo, uma audiência pública presidida pelo deputado estadual Emanuel Pinheiro que tratou do assunto das chamadas "comunidades terapêuticas" e sobre a possiblidade das mesmas receberem verba pública para o seu funcionamento. Durante a maior parte do tempo, o auditório mais pareceu uma igreja neopentecostal. Só faltou alguém cantar "PARA A NOOOOOOOOOOOOSSA ALEGRIIIIIIIIIIIIIIIIIAAAAAAAAAAAA...". Os religiosos aproveitaram para fazer proselitismo e um ou outro parlamentar aproveitou para disparar discurso demagógico para fazer uma média com os crentes presentes no local.

Em primeiro lugar, absolutamente ninguém é contra o trabalho dessas pessoas abnegadas que ajudam narcodependentes a se livrarem de seus vícios. O problema todo está em se discutir a possibilidade de se usar dinheiro público para financiar instituições que fazem proselitismo religioso. Isso ficou bem claro, por exemplo, no pronunciamento da doutora Daniela Bezerra, representante do Fórum Intersetorial de Saúde Mental. Ela deixou claro que um viciado que é tratado por essas comunidades cristãs não estão abandonando a dependência, só estão trocando uma droga por outra (ou seja, trocando o crack, a cocaína, o álcool etc. pela bíblia). Os monitores dessas comunidades, que também são pregadores religiosos, se aproveitam da condição de fragilidade psíquica dos viciados para inculcarem a doutrina religiosa nas mentes dos doentes. E isso é proselitismo religioso da forma mais perniciosa que existe, e dinheiro público financiando isso é um absurdo.

Robson Fireia, diretor da CUT, também se mostrou preocupado em deixar claro algo que deveria primeiramente ser preocupação dos representantes: dinheiro público tem que ser empregado exclusivamente em instituições públicas. Os serviços públicos que deveriam cuidar do problema dos usuários de drogas ilícitas deveriam receber a verba pública para funcionarem direito e não funcionam. Resta perguntar, com ceticismo: será que recebem o dinheiro? Robson também adotou a posição lúcida de defender a ciência em contraposição ao fanatismo religioso como forma de combate ao vício de drogas ilícitas. Essa mesma posição louvável também foi defendida pelo professor Reginaldo Araújo, da UFMT. Viciados em drogas deveriam ser tratados por profissionais de psicologia (e profissionais que também não façam proselitismo, pois hoje em dia existe até mesmo a figura nefasta do "psicólogo cristão"). Araújo ainda deixou claro que Cuiabá gasta cerca de 1 milhão de reais por dia no setor da saúde pública. Com todo esse dinheiro, a saúde não deveria, em tese, estar sucateda como está. Para onde vai todo esse dinheiro?

Mas o principal pronunciamento da audiência foi o do representante do Ministério Público, o promotor dr. Alexandre Guedes. Através de seu pronunciamento preliminar, pudemos perceber que o fato de que pessoas às voltas com problemas de drogadependência só procuram os parlamentares e as comunidades cristãs porque o serviço público realmente não está funcionando. Portanto, a discussão de dirigir verba pública às comunidades terapêuticas parece ser apenas um desvio de foco, pois trata-se de um absurdo. O foco principal deveria ser por que não há uma melhoria no serviço público de saúde, pois se os avanços nesse setor ocorressem de fato, não haveria a necessidade de se recorrer a essas muletas de terapias religiosas. Guedes encerrou o seu pronunciamento de forma brilhante, com uma defesa lúcida e direta da laicidade do Estado. Abaixo, trancrevo um trecho do pronunciamento do promotor:

"Quando se fala em recursos públicos para comunidades terapêuticas, nós estamos falando da mesma forma de recursos públicos para hospitais filantrópicos, e muitos deles são confessionais, são de igrejas. Então assim como uma pessoa que entra em um hospital que pertença a qualquer igreja, ela não é obrigada a receber sermões, mas ela tem que ser curada da sua apendicite, de qualquer problema que ela tenha, não se pode dar dinheiro público a quem usa proselitismo religioso. Isso tem que ser uma opção, isso tem que ser uma escolha. Não pode ser método e não pode ser condicionamento. Por quê? Porque os recursos públicos - agora eu estou falando como representante do Ministério Público do Estado brasileiro -, os recursos públicos, eles são pagos, os impostos são pagos por cristãos de suas várias denominações, são pagos por judeus, muçulmanos, umbandistas e ATEUS. E o dinheiro dos impostos, ele é todo misturado, e ele não pode ser usado para proselitismo religioso. Então essa é uma coisa que tem que ficar muito clara. Então as comunidades terapêuticas têm que aceitar as pessoas, homossexuais, ateus, umbandistas, do mesmo jeito que um hospital confessional recebe as pessoas. Quer dizer, tem que ajudar, ajudar a elas, mas não pode impor a sua religião, até por que o dinheiro dos impostos não pode ser usado, a Constituição proíbe que o dinheiro de impostos seja usado para fazer proselitismo religioso de qualquer religião. Isso vamos deixar muito claro."

Ninguém é contra o trabalho das comunidades cristãs. Sempre digo que é menos pior ver um bobalhão com uma bíblia debaixo do braço do que um bandido com um revólver na mão. Essas comunidades transformam bandidos perigosos em cordeirinhos pacíficos. Como afirmou Daniela Bezerra, os viciados, nesse caso, só trocam uma droga por outra. Mesmo assim, menos mal. O problema, como brilhantemente demonstrou o promotor Alexandre Guedes, é a possibilidade de uso do dinheiro público nessas comunidades. Ao invés de choramingar em audiências públicas, os líderes dessas comunidades deveriam pedir ajuda diretamente para Deus, e não para políticos. Como bem disse o promotor, não são apenas os cristãos que pagam impostos. Outros grupos sociais também são contribuintes e deveriam ser respeitados, pelo bem do Estado laico.

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